Rio: Código Disciplinar de 1970 prevê multas irrisórias para taxistas
Braço estendido, breve contato visual, porta aberta. Dali a alguns minutos e sacolejos, preço e pagamento. Em tese, atos simples. Mas passageiros e taxistas do Rio sabem que não. Um motorista pode, por vingança, acelerar a 150 km/h no Aterro do Flamengo só porque o passageiro sugeriu que ele trocasse de faixa. Outro pode misteriosamente mudar de ideia e, em plena Avenida Presidente Vargas, desembarcar à força a passageira que só queria ir à Zona Sul. Os casos, reais, são evidências de que há algo fora de ordem por trás das corridas. Absurdos registrados nos veículos que ostentam uma permissão pública para circular têm como uma das origens a ultrapassada legislação que regula a conduta dos motoristas, publicada em 1970. O Rio dos grandes eventos internacionais tem passivos. E um deles é o serviço de táxi — prova cotidiana de que o amarelo, farto nas ruas da cidade, virou a cor da indisciplina.
Com quase 43 anos de idade, o código estabelece multas irrisórias e pouco aplicadas para irregularidades cotidianas como a cobrança no “tiro”, comum em grandes eventos e feita sem uso de taxímetro. Uma lei que, segundo a prefeitura, só será revista em 2014, sexto ano do governo Eduardo Paes. Dos anos 1970 para cá, comportamentos se cristalizaram. Do mágico sumiço em dias de chuva ao ativo, e ilegal, mercado de permissões — temas desta primeira reportagem de uma série sobre o mercado de táxis.
Fundamentais para qualquer grande metrópole, taxistas da praça carioca podem ser gentis e espirituosos a bordo de um veículo de ótimo padrão. Às vezes, tornam-se até amigos de seus passageiros. Nem sempre, porém, é assim. O humor de um taxista é influenciado por uma classe dividida e inchada. O município tem 31.894 permissões titulares — quantidade equivalente ao número de carros circulando — e outras 22.761 para motoristas auxiliares, que usam carros de detentores das autorizações e precisam cumprir muitas vezes jornadas extenuantes para pagar, em dinheiro vivo, o aluguel diário. Essas cobranças podem ser feitas por permissionários ou por uma das 15 empresas autorizadas a administrar táxis no município. A atividade dessas companhias é alvo de uma ação do Ministério Público, que tenta, na Justiça, cassá-las.
Cada permissão dá direito a dois auxiliares. São 54.655 pessoas aptas a conduzir táxis, muitos veículos circulam 24 horas por dia com motoristas que se revezam. Hoje, pela oferta de veículos, há um táxi para cada 198 habitantes, enquanto o Plano Diretor da cidade, do fim de 2010, prevê um para cada 700 — em São Paulo a proporção é de um por 336 e, em Salvador, um por 368. A Câmara Municipal decidiu que não vai cassar permissões para atingir a proporção, e a prefeitura congelou a emissão de licenças. Ou seja: o equilíbrio previsto em lei só chegará quando o Rio praticamente quadruplicar sua população, passando dos atuais 6,3 milhões de habitantes para 22,3 milhões.
Essa multidão, que movimenta pelo menos R$ 10 milhões diariamente (se o ganho for de R$ 200 por jornada) e cujo rendimento médio é de R$ 4,5 mil mensais, tem suas normas de comportamento regidas pelo decreto publicado pelo então governador Negrão de Lima em 14 de maio de 1970, ainda no Estado da Guanabara. Anacronismos sugerem por que muitos taxistas criam suas próprias regras e decidem, por exemplo, que não subirão as ladeiras de Santa Teresa nem por um decreto. Afinal, segundo o código, recusar passageiro resulta em multa, quando aplicada, de apenas R$ 49,49. Para os que dirigirem embriagados, pechincha de R$ 49,49, fora a multa do Código de Trânsito Brasileiro. Faltou urbanidade, faltaram boas maneiras? Os mesmos R$ 49,49.
O tempo chuvoso pode dificultar a vida dos taxistas, com alta demanda e vias alagadas, mas nada impede que eles parem de rodar por preferência pessoal. Não há grade de horários, tampouco distribuição de licenças por regiões. Por isso, mesmo com alta proporção de amarelinhos, eles podem simplesmente desaparecer caso não haja interesse de circular.
É dever do motorista, diz o texto do código, “só indagar o destino do passageiro depois que este se acomodar no veículo”, assim como “dispor de troco necessário, arcando com o prejuízo quando não dispuser do mesmo”. Normas que são facilmente ignoradas por condutores mal-intencionados. A prefeitura tenta a operação Táxi Legal, da Secretaria Municipal de Transportes (SMTR), que funciona no estilo Lei Seca. Começou no dia 2 de dezembro e já lacrou 565 veículos por irregularidades. Nos últimos grandes eventos, como o réveillon de Copacabana, a SMTR concentrou esforços para coibir a cobrança no “tiro”.
Nos aeroportos Santos Dumont e Tom Jobim, que registram cobranças irregulares há décadas, só amarelinhos cadastrados no sistema Táxi Boa Praça da SMTR podem estacionar junto ao meio-fio das pistas no setor de desembarque. Por esse sistema, os passageiros podem escolher entre pagar pelo preço do taxímetro ou por uma tabela com valores estabelecidos pela prefeitura. Táxis comuns também podem buscar usuários nos terminais, mas operam num trecho mais curto e afastado das saídas. Mesmo com essa tentativa de ordenamento, casos graves ainda ocorrem, como o da turista colombiana Sandra Catalina Roncances, que ficou ferida após um taxista do Santos Dumont se recusar a dar um troco de R$ 4. Ele arrancou com o carro e a arrastou por alguns metros.
Ao longo de décadas, porém, não faltaram promessas. Em 1987, o Detran criou a operação Táxi Bandalha, para reprimir motoristas infratores, e apreendeu 564 taxímetros adulterados. Quase dez anos antes, em 1978, a leitora Alayde Gomes escreveu ao “Globo” reclamando de motoristas de um ponto no Leblon que “bebiam, jogavam ou conversavam à porta de uma pizzaria”. À época, o Detran informou que já havia feito uma “batida” e que os taxistas seriam chamados a frequentar um curso de reeducação de motoristas infratores.
— Precisamos acabar com essa cultura que atinge um número importante de taxistas. Essa parcela ainda quer aplicar a lei de Gérson. A legislação é apenas um dos detalhes entre os vários que resultam na qualidade ruim do serviço. A fiscalização não é rotineira. Não há controle algum sobre o tipo de permissionário que ingressa no sistema — alerta José de Oliveira Guerra, professor de Engenharia de Transportes da Uerj.
O excesso de táxis na praça é outro aspecto negativo ressaltado por Guerra:
— A média correta de táxis por habitante é variável porque é preciso levar em consideração, caso a caso, a rede de transportes da cidade, renda média e eventuais pontos turísticos. A necessidade de táxi diminui à medida que outros transportes começam a funcionar melhor, por exemplo. O número atual do Rio está está exageradamente alto. Seria razoável uma frota não superior a 23 mil táxis (273 para cada habitante). O Plano Diretor é no mínimo estranho porque empurra o problema com a barriga.
A lei disciplinar jurássica contrasta com decretos e liminares que saem a todo momento. Esses, sim, são novos. Têm o poder de determinar a distribuição e a transferências das permissões — aquele valioso cartão, nem sempre legível, afixado no para-brisa. Esse tipo de discussão tem atenção garantida de vereadores, conhecedores do capital político transportado pelos milhares de amarelinhos.
São duas grandes correntes na categoria: uma cobra a extinção da figura do taxista auxiliar e pede que todos ganhem suas permissões via licitação. Nela estão a Associação dos Taxistas do Brasil (Abratáxi) e representantes de uma nova edição do Movimento Diárias Nunca Mais, que, em 2000, parou a cidade com o bloqueio de vias públicas e conseguiu iniciar um processo de liberação de autorizações a auxiliares. Segundo cálculo da Abratáxi, 14 mil ex-auxiliares já obtiveram na Justiça suas permissões. O Sindicato dos Taxistas Autônomos e as empresas que alugam táxis por meio de diárias defendem o modelo atual.
Na Justiça, uma liminar do início deste ano suspendeu os efeitos de uma lei de 2012 que garantia a transferência de autonomias no mercado e o direito à herança. Na fronteira entre despachos de juízes e canetadas municipais, um ativo mercado de compra e venda informal de permissões públicas pelo qual cada cartão concedido pela prefeitura ganha caráter de bem particular e é cotado em cerca de R$ 130 mil.
Esse comércio também inclui o aluguel de permissões por espécies de “corretores de táxi”, uma categoria anômala e ainda pouco discutida. Eles alugam autonomias e as sublocam para motoristas interessados, muitas vezes em turnos de 12 horas.
Em outra frente, também figuram as empresas. Juntas, elas têm 1.671 licenças distribuídas ao longo de vários governos, sem licitação. Nelas, taxistas atuam como autônomos e pagam diárias de até R$ 190, passíveis de multa sobre esse valor caso o pagamento não ocorra no horário previsto.
Presidente do sindicato dos taxistas, Luiz Antônio Barbosa é a favor da transferência de permissões a terceiros, mas reconhece que a prática abre espaço para os “corretores”.
— Existem algumas pessoas no mercado que não são taxistas e vivem do aluguel e da compra de autonomias, colocando outras pessoas para trabalharem. Sou contra. Quem tem autonomia como aplicação financeira não faz parte da classe taxista. Por outro lado, essa pessoa está gerando emprego, são mais dez pessoas trabalhando — afirma Barbosa, que também tem opinião dividida sobre as empresas. — Vejo as empresas como geradoras de trabalho, é uma coisa à parte. Se não fossem elas, não teríamos oferta para auxiliares. É difícil opinar. Tem um lado negativo, mas na balança isso zera.
Além das disputas muitas vezes violentas por territórios-chave como aeroportos e rodoviária, os amarelinhos atuam irregularmente em pontos de rua — em tese livres, mas loteados por grupos de cada região que cobram cerca de R$ 20 mil por vaga, dizem taxistas.
Taxista há 27 anos e presidente da Abratáxi, Ivan Fernandes acredita que as licenças devem ser intransferíveis, cabendo apenas à prefeitura o direito de designar, via licitação, quem está autorizado a conduzir um táxi na cidade. O caminho vem sendo adotado por cidades como Belo Horizonte com o argumento de que vai moralizar o serviço.
— A permissão não é um bem e nem deve ser moeda de troca nas mãos de políticos. Se houver necessidade de colocar novos auxiliares ou fazer transferências de permissões, que seja pelo processo licitatório. É preciso regulamentar de uma vez por todas o sistema de táxis no Rio — critica Fernandes. — Organizar esse serviço hoje passa justamente por unificar e qualificar a categoria. Promover um curso com noções de inglês e geografia do Rio. Hoje, o serviço não está valorizando o profissional. O taxista conhece as ruas do Rio, mas não sabe nem falar a respeito da história do Pão de Açúcar.
Por isso, não estranhe se o taxista desconhecer a Rua Haddock Lobo, na Tijuca, ou não entender um “how much” de um turista. Ele não é obrigado. Para dirigir um táxi no Rio, basta ter carteira de habilitação, certidão criminal, registro no INSS e contribuição sindical. O decreto federal que regulamenta a profissão, de agosto de 2011, prevê cursos de relações humanas, direção defensiva e primeiros socorros àqueles que dirigem táxis. No Rio, entretanto, não há ainda qualquer treinamento voltado a esses profissionais. Em 1986, a Riotur criou um curso para oferecer noções de geografia e história da cidade, conhecimentos básicos de inglês, além de orientações sobre “psicologia do turista” a taxistas. O esforço, as ruas mostram, não trouxe resultados animadores.
— O turista que chega ao Rio é exposto à vulnerabilidade de um sistema sem regulação. De um lado, gritos para corridas caríssimas. Do outro, a possibilidade de pegar um táxi pirata. Esse serviço faz parte da engrenagem da indústria do turismo. Uma fiscalização rigorosa reduziria os atuais problemas — aponta Alexandre Rojas, mestre em Engenharia de Trânsito da Coppe e professor da Uerj.
Português do Porto, José Luís Moreira é conhecido como Zé do Táxi, mas prefere não ser chamado assim. Foi vice-presidente de futebol do Vasco entre 2001 e 2008, nas gestões de Eurico Miranda, e hoje comanda o futebol do Olaria. Mas sua atividade principal, desde 1982, é o táxi. Proprietário de três empresas (Táxi Verde, Novo Rio e Corcovado) das 15 autorizadas a alugar táxis no Rio, tem 284 permissões e compõe o sindicato dos empresários. Diariamente, motoristas vão ao galpão da companhia, em São Cristóvão, pagar uma diária que, segundo ele, custa até R$ 150. A sede tem cerca de 50 funcionários que trabalham com mecânica, lanternagem e pintura, entre outros. Uma grande oficina, mas só de táxis. Moreira discorda dos que dizem que há vinculo de trabalho entre motoristas e empresas:
— Eles (os críticos) gostariam que eu desse um carro novo, combustível, não cobrasse prestação de contas e, no fim do mês, ainda entregasse dinheiro a eles. Iam ficar felizes da vida, mas não é assim que a coisa funciona. Estamos num mundo capitalista, estou investindo na empresa, que tem de me dar retorno. As pessoas têm o direito de reivindicar, mas não querendo prejudicar os outros, tirar de mim em benefício próprio. Não pratico ato ilícito — argumenta Moreira. — Eles (motoristas) vêm aqui procurar trabalho e eu ofereço se eles cumprirem as regras. Tenho fila para entrar aqui. Não existe relação de emprego. Ele é autônomo, eu alugo o carro e, se ele quiser, trabalha dez, 12, 20 horas. É problema dele.
Por outro lado, o Ministério Público vê irregularidades.
— A permissão é um ato concedido para a empresa agir com o quadro dela. Se uma pessoa tem permissão para prestar um serviço público, não pode alugar esse direito para alguém que não foi selecionado pelo poder público. A ação é contra o município para obrigá-lo a cassar empresas — argumenta o promotor Eduardo Carvalho, da 8ª Promotoria de Tutela da Cidadania da Capital.
http://extra.globo.com/noticias/rio/codigo-disciplinar-de-1970-preve-multas-irrisorias-para-taxistas-7363583.html
Fonte:Extra Online